Na quietude pregressa do ambiente campesino, ali mesmo às portas da cidade do Porto, forrnaram-se aprazíveis quintas, umas servindo de habitação permanente dos seus proprietários, famílias de lavradores que nelas sucediam no fluir imparável das gerações, como os Inácios na quinta da Cruz, convizinha da Igreja matriz, os Meireles na Devesa, defrontada a poente pela Estrada Velha, outras apenas para recreio e repouso dos citadinos seus donos. A vida ali era serena, recanto procurado para retemperar as energias exaustas no aia da luta quotidiana. No interessante artigo publicado pela escritora Adriana da Cruz Guimarães, nas páginas do jornal O COMÉRCIO DO PORTO (1), lê-se que, quando se partia de vilegiatura para as quintas dos arredores, nos tempos passados, em transportes muito lentos, faziam-se despedidas, trocavam-se direcções e quase havia lágrimas. Depois, todos eram recebidos naquele santuário, onde se trocavam ideias - se expunham opiniões - se falava das colheitas - se resolviam casamentos - se repartiam heranças - e se discutiam todos os assuntos do dia a dia da cidade. Com o tempo, no adensar demográfico, o aglomerado urbano vai alargando as suas malhas devoradoras, engolindo o cimento as melhores terras, e transformando-se a paisagem contínua e imparavelmente. Na oportuna palestra proferida na Cooperativa Agrícola de Matosinhos, o arquitecto Miguel Mendes considerou que, até aos meados deste século, o concelho de Matosinhos era estruturalmente rural, mas, a partir daí, por uma dinâmica na transformação dos solos urbanos, resultante da iniciativa de alguns construtores, de natureza industrial e residencial, sofreu substancial redução de solos agrícolas, alguns deles riquíssimos. Essa devastação dos solos agrícolas tem origem no facto de constituírem áreas de extraordinário interesse para grandes empreendimentos as proximidades do porto de Leixões, do aeroporto e da própria capital nortenha, bem como diversos eixos viários que cruzam o concelho de Matosinhos. No panorama descrito, o palestrante considerou que já só Lavra e Perafita seriam as únicas freguesias fundamentalmente agrícolas nas dez que compõem o concelho. Sublinhou mesmo que as freguesias de Leça da Palmeira, Matosinhos, S. Mamede de Infesta, Guifões e Senhora da Hora praticamente já não possuem áreas agrícolas (2). Como por milagre, em S. Mamede de Infesta, Sobrevive uma bela e aprazível quinta denominada da Amieira, no lugar do mesmo nome, cercada por casario a estender os seus tentáculos fágicos e pelo emalhado de rodovias, sendo destas as principais a Estrada Exterior da Circunvalação a sul, e a Via Norte a poente. Cobre-a do devassamento da Rua do Tronco o muro de pedra. Nele se abre o aparatoso portão com gradaria de ferro forjado de fino recorte, que deixa entrever a alameda. Constituía um bem patrimonial pertencente à Casa de Minotes, da nobre família Martins da Costa, oriunda de Fermentões, do concelho de Guimarães. Francisco Martins da Costa, fidalgo da Casa Real, comendador da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, herdou da tia D. Luisa Rosa de Araújo Martins, pelo testamento com que esta faleceu, feito em 1854, as quintas de Aldão e Penouços e os moinhos do Rio Selho, na freguesia de Aldão, bem como todas as casas e prazos na cidade do Porto. Pouco tempo após, em 10-6-1856, por escritura lavrada nas notas do tabelião portuense Tomás Megre Restier, ele empraza a quinta da Amieira a Manuel de Fontes, negociante, e esposa D. Maria da Glória Fontes, moradores no Porto, por prazo fateusim perpétuo. Era então a aludida propriedade constituída pela quinta da Amieira sita no lugar assim denominado, da freguesia de Leça do Balio, constante de casas nobres de três andares, com capela, casas de caseiros, pátio, aidos, palheiros, terras lavradias, ramadas, árvores de fruta, pomar, noras, minas, água de bica, tanques e mais pertenças, tudo cercado de muros altos, a confrontar do nascente com o caminho de servidão da quinta e de diversos consortes, do poente com caminho de servidão, norte com o campo do Queirão ou Reimão, pertença da mesma quinta, do sul Manuel da Silva Jorge e com a Boucinha, também pertença da quinta; uma boucinha de terra de mato junto à quinta pelo lado sul, vedada com parede, a confrontar do nascente com o campo da Amieira, nos limites da freguesia de S. Mamede de Infesta; o campo do Queirão ou Reimão, de terra lavradia e videiras, que está junto à quinta pelo norte; o campo chamado O Chapéu de Três Bicos, de terra lavradia, a confrontar do nascente com o caminho de servidão da quinta e de outros consortes, do poente com a estrada que vai do Porto para o Padrão da Légua, do sul caminho de servidão; o campo do Redondo e da Cancela, de terra lavradia, a confrontar do nascente com caminho de servidão, norte herdeiros de Manuel Silva Guimarães e sul Manuel da Silva Jorge; o campo da Benfolga, de terra lavradia e videiras; a bouça do Talho, de mato e pinheiros; a bouça da Gatanheira, de mato e pinheiros e parte cultivada que confrontava do poente com caminho público do Porto ao Padrão da - Légua; todos estes campos e bouças sitos na freguesia de Leça do Balio; e finalmente o campo da Amieira, no lugar assim chamado que, como já foi dito, ficava no limite da freguesia de S. Mamede de Infesta, composto de terra lavradia com videiras, com uma presa que recebia águas da quinta da Amieira, a confrontar do nascente com Domingos de Almeida e Silva, António Wenceslau da Costa Dourado que era o proprietário da quinta do Dourado (3), e outros, do poente e norte com caminho de servidão. Vê-se, pelas confrontações dos diversos bens pertencentes à quinta e nela integrados, que se estendia desde o campo da Amieira, já em S. Mamede de Infesta, a nascente, até à estrada do Porto para o Padrão da Légua, actualmente denominada Rua Nova do Seixo, a poente, onde terminava a bouça da Gatanheira e o campo Chapéu de Três Bicos. Ainda hoje, o prolongamento da Rua Central do Seixo se denomina Rua da Amieira. No dia seguinte ao emprazamento, os enfiteutas, ou seja, os aludidos Manuel de Fontes e esposa, que se davam moradores na Rua das Hortas, da cidade do Porto, contraem o empréstimo de quatro contos de reis junto do senhorio directo. Justificavam eles necessitar de tão elevada quantia para negócios úteis ao casal. E para garantir o pagamento da dívida, hipotecavam a quinta da Amieira. Logo no dia 5 de Agosto, ocorre o falecimento de Francisco Martins da Costa, que era simultaneamente o senhorio directo da quinta e o credor com garantia hipotecária sobre o domínio útil. Sucedeu-lhe sua filha única D. Margarida Cândida de Araújo Martins, que casara em 20-9-1852, com o 2° Conde de Vila Pouca, Rodrigo de Sousa Teixeira da Silva Alcoforado. Ora, em 21-11-1865, faleceu D. Margarida Cândida sem descendentes, pelo que lhe sucedeu, como única e universal herdeira, a mãe D. Maria José da Silva Costa, no estado de viúva do já apontado credor originário. Dada a ocorrência destas transmissões, quer no domínio directo daquele prazo, quer na titiilaridade do crédito, ambas as partes, Manuel de Fontes e mulher, na dupla qualidade de credora, residente na Rua de Santa Luzia, em Guimarães, outorgam, em 18-3-1868. o contrato de reconhecimento de obrigação de dívida, porque a credora exigiu o expresso reconhecimento, com a confrontação circunstanciada da Quinta, para requerer o respectivo registo predial (5). Posteriormente, a quinta passou para a propriedade da família Calem, em cujas mãos se consolidou o domínio directo com o domínio útil. Nela viveram António Alves Calem e a esposa D. Maria Madalena da Cruz Oliveira e ai têm decorrido no fluir das gerações desta família os actos mais significativos. Nesta conformidade, em 10-6-1911, a cerimónia religiosa do casamento da filha de António Alves Calem Júnior, de nome D. Júlia de Oliveira Calem, com Alfredo Leopoldo Carlos Hoelzer, teve lugar na Capela da quinta (6). Outra das filhas, D. Maria Joaquina de Oliveira Calem também aí casou, em 7-6-1919, com António Montez Champalimaud. comerciante no Porto (7) E sob o acolhedor telhado do solar da quinta da Amieira sediaram o lar conjugal. Um facto grave, porém, apanhou-os de sobressalto na madrugada de 10-2-1921. D. Maria Joaquina ainda se encontrava a pé quando ouviu os estalidos de madeira a arder. Depressa se certificou que aquele ruído provinha de fogo que lavrava na copa, situada nos baixos do edifício. Pelo telefone foram avisados os bombeiros voluntários do Porto e os de S. Mamede de Infesta. Todavia, quando os bombeiros chegaram, já a sala de jantar, a cozinha, a copa e outros compartimentos eram consumidos pelas chamas. Foi montada a auto-bomba junto de um grande tanque existente na propriedade que alimentou três agulhetas. Graças ao corte do travejamento, efectuado pelos bombeiros, salvou-se, do lado nascente, uma pequena parte do edifício. Os prejuízos sofridos foram avultados. Na voragem do incêndio perderam-se valiosas peças da colecção de Arte de António Champalimaud (8). Nessa noite o casal teve de pernoitar na casa da família Rodrigo Pinto Leite, em S. Mamede de Infesta. Também, em 6-5-1922, Joaquim de Oliveira Calem, outro dos filhos dos mencionados António Alves Calem Júnior e esposa, casou na capela da quinta da Amieira com D. Maria Helena Pacheco e a este solene acto presidiu o bispo do Porto D. António Barbosa Leão. Desta família as gerações se vão sucedendo e aquela grande casa acolhe os que chegam no abraço tutelar. Depois, abençoados na Capela e recebidos pelo sacramento do matrimónio, partem pelos trilhos da vida. Nesta tradição já criada, duas das filhas deste último casal, ali casaram, respectivamente, com dois irmãos gémeos da família Almeida Garrett. Com efeito, D. Maria Luísa Pacheco de Oliveira Calem casou, em 26-3-1951, com o médico Dr. José Maria de Almeida Garrett; e a irmã daquela, D. Maria Teresa casou, em 17-9-1955, também, na capela da quinta, com Alexandre de Almeida Garrett (9). Na quinta da Amieira ocorreu as sete horas da tarde do dia 25-4-1918 acontecimento algo insólito já para o tempo. Aí bateram-se em duelo, à espada, o capitão Jorge Dias da Costa, ao tempo sub-chefe do Estado Maior, e o capitão Alfredo Meio de Carvalho, comissário geral da polícia do Porto. Em escassos vinte segundos de combate, o capitão Meio de Carvalho foi ligeiramente tocado, dando-se a seguir um corpo a corpo do qual resultou para o capitão Jorge Dias da Costa uma ferida incisa na região frontal, apesar da pronta intervenção das testemunhas. Os médicos declararam, no acto, que este ferimento colocava o capitão Jorge Dias da Costa em manifestas condições de inferioridade oerante o adversário. As quatro testemunhas, duas de cada parte, alicerçadas no pretexto daquelas opiniões, deram por concluída a pendência com honra para ambos os contendores. E ali mesmo no campo os adversários reconciliaram-se. Oxalá a onda avassaladora do progresso, ao esbarrar naqueles altos muros, quebre a sua gana destrutiva, tocada pelo repousante silêncio do belo jardim com canteiros de sebes de buxo aparado, por onde ainda trinam descuidados os pássaros, da esbelta taça de água e do relógio de sol que, na escala entalhada no duro granito, tem uma outra medida para o tempo, mais ajustada à criação divina e que se não deve destruir. NOTAS: 1) De 16-10-1988. 2) In JORNAL DE MATOSINHOS de 18-11-1988. 3) Já por nós estudada no BOLETIM CULTURAL DA BIBLIOTECA PÚBLICAMUNICIPAL DE MATOSINHOS n° 30, ano 1986. 4) Escritura lavrada em 11-6-1856, nas notas do tabelião do Porto Manuel CarneiroPinto, existente no Arquivo Distrital do Porto com a cota PO-1-N 687,4a série, fls. 98. 5) Escritura lavrada nas notas do tabelião Tibério Augusto Pereira Mendes, da cidadedo Porto. No ADP: PO-1-N 706,4a série, fls. 77. (6) O TRIPEIRO, VI série, ano I, pág. 190. A descendência deste casal vem noANUÁRIO DA NOBREZA DE PORTU-GAL, II, 1964, pág. 615. 7) Cfr. ANUÁRIO DA NOBREZA DE PORTUGAL, II, 1964, pág.808. 8) Cfr. O PRIMEIRO DE JANEIRO de 10-2-1921; O TRIPEIRO VI, ano XI, pág. 62. 9) Ambas com descendência tratada in ANUÁRIO DA NOBREZA DE PORTUGALvol. II, 1964, pág. 498, e vol. III, tomo II, 1985, pág. 93. Publicado em O Tripeiro, de Junho, 1992, 7a série, ano XI. n° 6, págs. 185-188